segunda-feira, dezembro 18, 2006

Jacinto Veloso rompe com tradição partidária

Canal de Leitura - por João Cabrita

Titulo: Memórias em Voo Rasante, 290 pp (ilustrado)
Autor: Jacinto Veloso
Edição: Correia Paulo (Maputo 2006)
Preço: 350,00 MTn

Maputo (Canal de Moçambique) Por norma, os membros e dirigentes da Frelimo são péssimos contadores de histórias. Regra geral, o seu discurso é nauseante, embora a retórica de alguns deles até chegue a ser divertida. Jacinto Veloso rompeu com essa tradição, à semelhança do que Janet Mondlane (O Meu Coração Está nas Mãos de um Negro) e Hélder Martins (Memórias de Um Médico de Uma Guerrilha Esquecida) haviam feito, se bem que em Memórias em Voo Rasante o salto tenha sido mais ousado e desassombrado, mercê das revelações, das críticas e análises que faz, e pela forma aberta e por vezes cândida como o autor trata de assuntos tão diversas como a sua vida pessoal, as relações de Moçambique com o «Bloco de Leste», o triunfalismo reinante nas hostes da Frelimo, as intrigas nos bastidores do poder, etc. Por contar ficaram muitas outras coisas, e, por esclarecer na sua totalidade, questões controversas como no “Caso Socimo”.

Deixando uma carreira promissora na Forca Aérea Portuguesa (FAP), com perspectivas de se mudar para a prestigiosa aviação comercial, Veloso abandonou barcos e redes para um futuro incerto a norte do Rovuma. Em Dar-es-Salam a decepção foi total: as autoridades tanzanianas não entendiam que havia brancos nacionalistas em Moçambique, e Mondlane não se esforçou, junto delas, para que os dois fugitivos permanecessem no país, especialmente porque o presidente da Frelimo considerava o passageiro que Veloso havia trazido de Mocímboa da Praia como “um comunista nato”, uma má influencia para um movimento na altura profundamente comprometido com os Estados Unidos.

As vicissitudes do exílio continuaram a manifestar-se em Argel e depois em Paris onde o autor chegou a ter de trabalhar como operário (mal pago) de uma fábrica de peças sobressalentes. Só quase no término da guerra é que Veloso voltaria à ribalta, mas as suas ambições no pós-independência são modestas: pretende ser apenas director da DETA, mais tarde crismada de LAM. É Machel quem lhe abre as portas para voos mais altos, oferecendo-lhe o ingrato cargo de chefe de uma polícia política cujo estatuto orgânico um jurista moçambicano viria a descrever como uma “monstruosidade jurídica”, feito à medida para os brutamontes do Sereco-CIM com quem o piloto teve de coabitar. Do que daí naturalmente decorreu não fala o autor nas suas memórias, certamente por serem arrasantes os pormenores!... Afinal, é para esquecer o tempo que passou...

Como chefe da nova secreta da Frelimo, Veloso conta que teve de aturar alemães, soviéticos e cubanos. Escreve o autor que foi sob pressão de Cuba e da RDA que o governo moçambicano teve de expor a rede de espionagem da CIA que operava a partir da embaixada americana em Maputo. Diz ele: “Como responsável da Segurança do Estado, resisti durante mais de dezoito meses às pressões dos cubanos e alemães do Leste para neutralizar o dispositivo da CIA existente em Moçambique” [p.146] o que acabou por levar “os serviços do Leste a preparar um plano para me afastar da segurança.” [p. 224] Do enxovalho a que o governo submetera os Estados Unidos, depressa se arrependeu Samora Machel que, célere, despachou Hermenegildo Gamito a Washington para por água na fervura. Babados pela deferência, os senhores do State desceram sobre Maputo em caravelas voadoras, perante a incredulidade dos ultras do regime, nem dois meses sequer haviam decorrido desde o estalar da borrasca que o DTIP (Departamento do Trabalho Ideológico do Partido) condimentara com banda desenhada.

Veloso dá uma panorâmica das opções políticas da Frelimo após a independência, trazendo a público a linha de orientação dos dirigentes do partido, e das desilusões que alguns deles sofreram nos anos subsequentes. O magnata (comunista) francês, Jean-Baptiste Doumeng, surge como aquele que aconselhou a Frelimo, por intermédio de Veloso, a acordar para a realidade e deixar-se de fantasias quanto à viabilidade da “linha correcta” assente no modelo soviético [p. 139] no qual nem o próprio Edouard Shevardnadze, ministro dos negócios estrangeiros da era Gorbachev, acreditava. [p. 141] Esta realidade põe em cheque a conjectura de Veloso segundo a qual “Samora Machel era um homem a abater porque tinha ‘traído o campo soviético” e decidido “optar pela liberalização da economia, aderindo ao sistema capitalista internacional, ao Banco Mundial e ao FMI.” [p. 205] E antes do “assassinato”, argumenta Veloso, os soviéticos “indeferiram a entrada de Moçambique no COMECON.” Na realidade, o contrário foi precisamente o caso: Samora Machel foi bater à porta do Banco Mundial do FMI por que, desde 1975, via recusada a entrada de Moçambique na organização económica liderada pela URSS, para desconsolo de Marcelino dos Santos e dos seus adeptos na planificação centralizada da economia.

Jacinto Veloso fornece novos dados sobre o processo de negociações conducentes à paz em Moçambique. Dele tem-se uma perspectiva da forma como os sul-africanos se comportavam à mesa das negociações, da exaltação dos ânimos de Roelof Botha, das anedotas de Joaquim Chissano para quebrar o gelo, ficando muito por contar a respeito da Renamo pese embora o facto de ter sido através de Jacinto Veloso que se vislumbraram os primeiros sinais de que o governo da Frelimo pretendia uma solução negociada para a guerra civil. O papel que Veloso atribuiu a um antigo colega seu da FAP, João Quental, conhecido pelas suas ligações à Renamo, não é focado no livro, como também não são mencionados os contactos que João Leitão, representando a empresa tutelada pelo Ministério da Segurança (a Socimo), assessorado por Fernando Honwana, manteve com Álvaro Récio, um empresário português radicado na África do Sul e que a Frelimo, erradamente, concluiu ser um elemento-chave da Renamo por no passado ter sido homem da confiança de Jorge Jardim.

O autor reconhece que o fracasso das conversações de Pretória de 1984, entre o governo moçambicano e a Renamo, sob mediação da África do Sul, em parte deveu-se à posição ambígua assumida pelo regime da Frelimo no decurso dos contactos. Diz Veloso: “Devo dizer também que, do nosso lado, as notícias difundidas pelo nosso governo através da Rádio Moçambique, dizendo que queríamos negociar não com os ‘bandidos armados’ mas sim com os seus chefes, que eram militares sul-africanos, prejudicaram o ambiente e ofereceram um excelente argumento para influenciar a Renamo a não assinar tal documento” (acordo de cessar-fogo). (p. 184)

Mas nem todos os contactos com a África do Sul do apartheid, ou através dela, haviam sido em vão. As diligências de Leitão-Honwana e a abordagem feita, em paralelo, a João Quental viriam a desembocar no Acordo de Nkomati, algo com que a Frelimo até nem contava pois a ideia inicial era um encontro com Afonso Dhlakama. Os sul-africanos de forma alguma iriam deixar escapar a oportunidade de amarrar a Frelimo a um acordo. Encorajado pela tradicional soberba americana, que prometia “resolver o problema sul-africano” de Machel, isto é, a Renamo, o governo da Frelimo deixou-se levar, alinhando no esquema. Por via do acordo, o governo da Frelimo conseguiu, pelo menos, pôr termo aos ataques directos sul-africanos a Moçambique. (p. 180) Apesar das violações ao acordado, por parte de Pretória, os apoios logísticos à Renamo nunca voltariam a ser os mesmos, o que para as forças governamentais e suas aliadas representava, em teoria, um maior campo de manobra. A dinâmica da guerrilha, aliada à impreparação, ao cansaço e à desmotivação das FPLM anularam esse aparente ponto de vantagem.

Ao invés daquilo que até agora se julgava, as violações ao acordo não partiram apenas dos sul-africanos. Conta Veloso que “a introdução de armas pesadas na África do Sul, aconteceu exactamente já depois da assinatura do Acordo de Nkomati. E tudo correu bem! Foram operações muito arriscadas, mas bastante bem executadas pela nossa segurança do Estado e pelo ANC. Na prática, participávamos e fechávamos os olhos a estas violações ao acordo, em apoio à causa do ANC.” (p. 176)

Sobre o desastre de Mbuzini, o autor distancia-se e até contraria a linha oficial do seu partido, embora insistindo na tese infundada do VOR falso. Mas os importantes dados que Veloso apresenta neste capítulo permitem tirar conclusões: Sérgio Vieira foi dos que, dentro do regime da Frelimo, aparou o jogo da União Soviética, ao evacuar Vladimir Novessolov para Moscovo, fazendo tábua rasa dos princípios norteadores da Comissão Nacional de Inquérito, para que, assim, o sobrevivente-chave do desastre pudesse ficar fora do alcance dos investigadores, tanto moçambicanos como sul-africanos. É significativo que, aqueles que há mais de 20 anos andam a entreter a opinião pública com intermináveis investigações em torno do famigerado VOR falso, não tivessem dispensado uma hora sequer à obtenção do testemunho de quem esteve dentro da cabine de comandos da aeronave acidentada.

Jacinto Veloso conclui o livro de forma ambígua. Por um lado, recupera o legado de Mondlane, dizendo às novas gerações que o melhor é “reduzir sempre os inimigos e aumentar sempre os amigos”, e que o melhor socialismo é o “socialismo democrático.” [p. 259, 264]. Mas por outro, retomando a linha Machel, enaltece o anacrónico centralismo democrático, ao dizer que “até hoje o maior e mais bem organizado partido da oposição ao governo eleito está dentro da própria Frelimo...” [p. 119]

(João Cabrita / Canal de Moçambique)


2006-12-18 08:41:00

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