quinta-feira, abril 01, 2010

Por uma leitura sócio‐histórica da etnicidade em Moçambique

Por Sérgio Chichava

Continuacão da série aqui

II‐O período democrático e a afirmação dos particularismos

Com a introdução de uma nova Constituição em 1990, que consagrava o pluralismo social, político e económico, grupos étnicos até então não reconhecidos, ou que assim percebiam sua situação, começaram a reivindicar abertamente a sua integração no poder ou no Estado. No entanto, para evitar a emergência de partidos étnico‐regionais, a Frelimo inscreveu na lei que, para ser legalizado, cada partido devia ter um mínimo de assinaturas em cada província. Também, a constituição proíbe de partidos em bases étnicas ou regionais.

Facto interessante é que a maioria dos partidos políticos criados no quadro da nova Constituição era formada por indivíduos do Norte do Save, que, como vimos, sempre se sentiram excluídos do poder. Igualmente, alguns destes partidos políticos (sobretudo da Zambézia) reivindicaram o federalismo, o qual era visto como a solução ideal para uma melhor redistribuição de recursos (políticos e económicos) e inclusão dos grupos étnicos excluídos nas instâncias do poder. Trata‐se por exemplo de partidos como a União Nacional Moçambicana (UNAMO); da Confederação Democrática de Moçambique (CODEMO); do Partido Liberal e Democrático de Moçambique; (PALMO); Partido Democrático de Moçambique (PADEMO); O Partido Nacionalista Federalista (PANAFE); do Partido Progressivo e Liberal Federalista das Comunidades Religiosas de Mocambique (PPLFCRM)22. Havia também o Partido Federal de Moçambique (PAFEMO), que como o seu nome indica, também defendia o federalismo, cuja legalização foi recusada pelo Ministério da Justiça por ter sido considerado anticonstitucional 23.

Outro facto interessante foi a emergência de associações étnico‐regionais, entre as quais pode‐se sublinhar a SOTEMAZA (cujo acrónimo representa as províncias de Sofala, Tete, Manica e Zambézia), Movimento Cívico de Solidariedade e Apoio à Zambézia (MOCIZA), Associação para o Desenvolvimento de Nampula (ASSANA) e a Associação dos Nativos e Amigos de Maputo (Ngiyana ou Nygana)24. O mais interessante nisto é que, por detrás destas associações, havia antigos ou futuros dirigentes da Frelimo. Na Ngiyana, podíamos encontrar, por exemplo, personalidades como Armando Guebuza (actual presidente da Republica), Teodato Hunguana, Américo Mfumo, Raul Honwana, entre outros. Na SOTEMAZA, podíamos encontrar pessoas como Pedro Comissário, um Sena originário de Sofala e alto quadro da Frelimo. Na MOCIZA, havia nomes como Hélder Muteia, Abdul Carimo, Pedro Murrima, ambos naturais da Zambézia. Estas duas associações representavam as elites do vale da Zambézia, que durante muito sentiram‐se excluídas do poder pela Frelimo. Na ASSANA, tínhamos, por exemplo, figuras como Adelaide Amurane, Dionísio Cherewa e Rosário Mualeia. O aparecimento destas associações veio a acordar os particularismos.

As elites da SOTEMAZA ― associação explicitamente sena ―, encabeçadas por Pedro Comissário, numa carta dirigida ao então presidente da República, Joaquim Chissano, e ao seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Pascoal Mocumbi, pediam a inclusão dos senas ― o segundo maior grupo étnico do país ― no poder, de modo a garantir a coesão nacional25. Nesta carta, Pedro Comissário, que dizia não compreender as razões da exclusão dos senas do poder, indicava uma lista de dez personalidades da etnia sena, que segundo ele eram capazes de exercer ou de ocupar funções de direcção no seio do governo. Segundo este alto responsável da Frelimo, a inclusão dos senas no governo iria acabar com a humilhação e marginalização de que eram vitimas no seio da sociedade moçambicana. Este pedido de Pedro Comissário, primeira a ser feita publicamente na história do Moçambique independente, aparecia um pouco depois da eclosão de conflitos entre os Ndaus e Senas na cidade da Beira26. Este conflito, explorado e exagerado por alguns círculos políticos que esperavam tirar dividendos, encontra uma das suas raízes de explicação na interdição pelo arcebispo da Beira, Dom Jaime Gonçalves (da etnia Ndau), da utilização do Xi‐sena durante os cultos, favorecendo o Xi‐ndau. Este conflito, visto pelos Senas como discriminação, chegou a provocar confrontos entre estes dois grupos, obrigando ao fecho da catedral local durante mais ou menos um período de um ano.

Quanto à MOCIZA e à ASSANA, a Frelimo, numa tentativa de reequilíbrio interno, optou pela cooptação das elites destas associações. Com efeito, temendo que tais associações, ― ambas representando as elites das duas províncias mais populosas do país, elites que sempre se consideraram excluídas das instâncias do poder ― se transformassem em partidos políticos ou em veículos de contestação ao seu governo, a Frelimo tratou de cooptar seus dirigentes. Assim, na MOCIZA, Hélder Muteia, depois de ter sido deputado, foi vice‐ministro da Agricultura (1995‐1999) e Ministro da Agricultura (1999‐2004); Abdul Carimo apareceu como deputado da Frelimo e, mais tarde, ascendeu ao cargo de vice‐presidente da Assembleia da República; Pedro Murrima foi indicado Presidente do Conselho de Administração dos Correios de Moçambique:

Na ASSANA, Rosário Mualeia, na altura secretário‐geral desta associação, foi nomeado governador da província de Nampula; Adelaide Amurane ficou vice‐ministra do trabalho (1994‐2004) e Dionísio Cherewa, na altura funcionário da embaixada dos Países Baixos em Nampula, foi indicado como candidato da Frelimo ao município desta cidade nas primeiras eleições locais de 1998. Assim, cooptando‐se os principais membros, a MOCIZA e a ASSANA foram fragilizadas à nascença.

Em 1994, reivindicações étnicas dos macuas de Montepuez, província de Cabo Delgado, que se queixavam de serem dominados pela minoria maconde, foram reportadas27. Para estes macuas, era incompreensível que o distrito de Montepuez, uma zona predominantemente macua, fosse dirigido por um maconde. Estas revindicações, que chegaram a atingir alguns contornos violentos, foram acompanhadas da exigência da inclusão dos macuas nas instituições do Estado. Igualmente, os macuas perguntavam‐se por que é que em toda a província só havia dois administradores macuas, enquanto eles constituíam a maioria. Tratava‐se do reacender das velhas clivagens sócio‐históricas entre estes dois grupos étnicos. Com efeito, reza a história que durante o período esclavagista, os macondes teriam traficado os macuas.

Este período também foi marcado pela aparição de jornais com designações de grupos étnicos. Trata‐se, por exemplo, de “Moçambique para todos” (http://www.macua.blogs.com) 28. Nas universidades públicas, como a Universidade Eduardo Mondlane, foi introduzido o ensino de certas línguas locais. No município de Maputo, o xi‐ronga foi em 2000 adoptado como uma das línguas oficiais de trabalho29.

Leia todo o artigo aqui

Fonte: Instituto de Estudos Sociais e Económicos

Sem comentários: