terça-feira, maio 04, 2010

Sobre o último debate na magna Assembleia da República (1)

Por João Baptista André Castande

“(…) Nesta fase de democracia pluralista, há que ajustar a concepção da implementação dos órgãos de base nos diferentes sectores da sociedade. As células do partido Frelimo já não são estruturas com funcionamento paralelo aos órgãos administrativos existentes nos locais de trabalho e de residência. Porém, isto não quer dizer que os militantes da Frelimo não tenham a obrigação de se organizarem para fazer valer as ideias do partido onde quer que estejam. Quer dizer, sim, que as células devem funcionar tendo em conta as leis e as normas que regulam o comportamento das associações políticas e dos cidadãos nos locais onde estão inseridos. Há, no entanto, que considerar as limitações impostas por lei, quanto ao funcionamento dos partidos, nomeadamente no Aparelho do Estado, nas fábricas e nas empresas, onde existem regras próprias e que são extensivas a todos os trabalhadores.” – excertos do número 2.4 do Relatório do Comité Central ao 6.º Congresso do partido Frelimo.

A transcrição do trecho supra vem a propósito do debate havido na nossa magna Assembleia da República, durante a sessão de perguntas ao Governo, nos dias 28 e 29 do passado mês de Abril, e concretamente acerca da pergunta feita pela Bancada do partido Renamo que, no meu ponto de vista, punha em questão a base legal em que se funda o direito de criar células do partido Frelimo nos órgãos e instituições do Estado.

Exposta a pergunta, seguiu-se um medonho rosário de demonstrações de ignorância e/ou indisfarçável cinismo, tudo isto vindo de personalidades cuja estatura política e social nunca as imaginamos em tão baixo nível intelectual. Concordo com o compatriota Kandiyane Kandiya quando, nas suas «Assombrações» de 2-5-2010, sugere que uma das coisas que se devia exigir e impor como condição para se ser inquilino da “Casa do Povo”, seria uma prévia formação e capacitação em pelo menos Relações Públicas e Educação Moral e Cívica além da indispensável sanidade mental.

Inúmeras vezes disse nesta bela página do matutino “Notícias”, patriótico e imparcial veículo do pluralismo de expressão e do confronto de ideias das diversas correntes de opinião – artigos 3 e 48 da Constituição da República de Moçambique (CRM) – que o maior problema do nosso país é a ignorância, que não resulta da falta de escolaridade mas sim do quão humilhante e nojento partidismo, a bajulação, a traição ou sabujice, ao invés da formação cívica e patriótica de que tanto carecemos!

Com efeito, alguns dos nossos ilustres deputados vieram com o indigesto argumento de que a criação de células do partido nos órgãos e instituições do Estado é decisão do 9.º Congresso. Na minha modesta opinião, este argumento é fruto do desconhecimento dos estatutos do próprio partido Frelimo, cuja honra urge defender, porquanto:

a) Tendo em atenção que o partido Frelimo é fiel continuador das "tradições da gesta do 25 de Junho de 1962”, há que recordar que a formação de células da Frelimo nos locais de trabalho é um princípio que vem consagrado nos seus estatutos constitutivos, salvo o erro na alínea c) do seu artigo IX, princípio este que foi sucessivamente confirmado em todos os estatutos aprovados pelos oito congressos subsequentes;

b) Mas nem por isso aceitamos que os comandos dos estatutos do partido prevaleçam sobre todo o ordenamento jurídico moçambicano, pois essa tentativa não passa de pura manobra de diversão. Antes bem pelo contrário: a formação, a estrutura e o funcionamento dos partidos políticos, sem nenhuma excepção, é que devem subordinar-se à Constituição e à lei, segundo determinação expressa do artigo 75 da CRM;

c) Outros limitaram-se a invocar uma série de leis e algumas disposições constitucionais que bem conhecem de cor e salteadamente, com o fito de convencer a opinião pública que “estamos no bom caminho”. Esqueceram que a simples existência de leis não significa a imediata solução dos assuntos neles abordados. Felizmente, aprendemos com o saudoso compatriota Samora Moisés Machel que governar não é apenas produzir leis, cujos fins são desconhecidos pela maioria dos cidadãos. Leis que por conseguinte acabam por transformarem-se em letra morta;

d) Mas quem é que não sabe que a aplicação das leis neste nosso belo país foi e continua assunto adiado? Se assim não fosse, julgo que o presente debate não teria lugar hoje, volvidos que já lá vão mais de 17 anos após a introdução do processo de democracia multipartidária.

Despundonorosamente, confundiram o Governo com a Administração Pública, duas instituições do Estado distintamente tratados nos artigos 200 a 211 e 249 a 253, respectivamente, todos da CRM, o que levou a respeitáveis personalidades a incutir-nos a ideia de que qualquer funcionário do Estado em funções de direcção e chefia é membro do Governo. Por isso, reiteravam incansavelmente tais personalidades, que os referidos cargos são de confiança política.

Sendo Moçambique “Estado de Direito Democrático”, subordinado à Constituição e fundado na legalidade, de conformidade com os artigos 2 e 3 da CRM, a dúvida que fica é: onde é que foram buscar tamanha enormidade?

a) Sobre a matéria em questão, o artigo 37 do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado (EGFAE) reza apenas que “as funções de direcção, chefia e de confiança são exercidas em comissão de serviço e só podem ser preenchidas com obediência às exigências e demais requisitos referidos nos respectivos qualificadores”;

b) Da leitura dos vários qualificadores profissionais existentes, não encontrei em nenhum deles a referência à dita confiança política, como sendo exigência e requisito para o exercício dos cargos em apreço;

c) Enquanto o artigo 20 do Estatuto Geral dos Funcionários do Estado (EGFE), ora revogado pelo artigo 2 da Lei n.º 14/2009, de 17 de Março, dizia claramente que são considerados de confiança o exercício de funções de chefe de gabinete, assessor, conselheiro do governador provincial e secretário particular, o actual EGFAE e respectivo regulamento (REGFAE) são omissos neste aspecto, sabe-se lá porque;

d) Outros deputados, ainda, apontaram o concurso de recrutamento de secretários permanentes para alguns ministérios como exemplo eloquente e insofismável da lisura dos actos administrativos na Função Pública. Todavia, para pessoas de mente sã esta matéria suscita as seguintes dúvidas:

Oficialmente reiterado que está, que o exercício de funções de direcção e chefia é reservado a funcionários membros do partido no poder, em gozo de confiança política, e sendo um dos requisitos exigidos aos candidatos haver exercido funções de direcção e chefia por um período não inferior a cinco anos, não estaremos desta feita a expor as nossas mazelas, a contra-senso e falta de prudência, demonstrando que só os candidatos membros do partido Frelimo, gozando de confiança política, é que estão em condições de ocupar o cargo em questão?

Não estaremos assim, ainda que involuntariamente e sem má fé, a discriminar os demais funcionários com base na sua liberdade de não pertencer a nenhuma filiação partidária? Injustiça esta extensiva àqueles que, sendo do mesmo partido, entretanto são excluídos da dita confiança política?

iii) Não foram bastantes as críticas da opinião pública nacional sobre o facto de exigir experiência de cinco anos aos jovens que, pela primeira vez, pretendiam ingressar no mercado de emprego?

iv) A propósito, quem é que nasceu chefiando, senão quando pela primeira vez lhe deram essa oportunidade? O que é que o funcionário ou agente do Estado deve fazer para merecer a preciosa confiança política?

NR – Por lapso publicou-se na edição de ontem a última parte desta carta, em vez da parte inicial, o que não permitiu a compreensão cabal do seu conteúdo. Pelos transtornos causados pedimos as nossas sinceras desculpas ao autor e aos nossos estimados leitores. Deste modo, hoje publicamos a primeira parte e amanhã finalizaremos com a publicação da parte conclusiva.

Fonte: Jornal Notícias - 05.05.2010

Reflectindo: 1) Um texto muito rico este. Sempre me questionei se no meu país não haviam juristas que defendessem a Constituicão da República e que dissessem que: a formação, a estrutura e o funcionamento dos partidos políticos, sem nenhuma excepção, é que devem subordinar-se à Constituição e à lei, segundo determinação expressa do artigo 75 da CRM;
2) Chacate Joaquim questionou n seu blog sobre o que foi chamado de concurso para secretários permanentes dos ministérios. Estranhamente os partidos políticos da oposicão, incluindo a Renamo e o MDM, a sociedade civil e não menos as organizacões juvenis não fizeram qualquer observacão sobre este processo. Espero que se pegue pelos pre-apurados e os apurados definitivamente para uma análise cuidadosa.