quarta-feira, outubro 23, 2013

O início do fim da história de sucesso Moçambicana? Algumas Reflexões

Uma leitura atenta do AGP ajuda a dissipar dúvidas quanto à questão legal:

Por Anícia Lalá

1- No Protocolo IV, ponto III. 1 sobre “Actividades de Grupos Armados Privados e Irregulares” diz que todos os grupos armados, paramilitares, privados e irregulares que se encontravam em actividade no dia da entrada em vigor do cessar-fogo seriam extintos, e seria proibida a constituição de novos grupos da mesma natureza. Uma excepção foi aberta no ponto III.3 em que diz que a Comissão de Supervisão e Controlo poderia autorizar, a título temporário, a continuação da existência de organizações de segurança para garantir, durante o período entre o cessar-fogo e a tomada de posse do novo governo, a segurança de determinadas infra-estruturas públicas ou privadas.

2- No Protocolo V, o Ponto III intitulado “Garantias Específicas para o período que vai do cessar fogo à realização de eleições”, a alínea 8 diz: “A RENAMO será responsável pela segurança pessoal imediata dos seus mais altos dirigentes. O Governo da República de Moçambique concederá estatuto policial aos elementos da RENAMO encarregados de garantir aquela segurança”.

3- Assim sendo, está claro que esta disposição do AGP era temporária, e sendo que as eleições se realizaram em Outubro de 1994, a partir dessa data esta força passou a ser irregular. Visto que a força respondia perante o líder da Renamo poderia ser considerada uma polícia privada de um partido político, e ilegal à luz do artigo 52 da Constituição de 2004 que proíbe “as associações armadas de tipo militar ou paramilitar, e as que promovam violência, o racismo, a xenofobia, ou que prossigam fins contrários a lei”. Ora a existência de uma força desta natureza, é pouco recomendável a qualquer Estado democrático, e na verdade, a experiência de um sem número de países Africanos tem vindo a demonstrar que a sua perpetuação tende a provocar focos de instabilidade e de insegurança. 

Contudo, a Paz não deve ser refém de uma leitura restrita da legalidade:

4- Foi implicitamente permitida a continuação desta força pelos anteriores Governos de Moçambique, precisamente para evitar confrontações violentas e um eventual regresso ao conflito armado. É de recordar que ao longo dos tempos tem havido escaramuças ligadas à actividade desta força da Renamo, e que em determinado momento, se não estou em erro, em 2004, os seus membros manifestaram-se, solicitando a sua desmobilização. Tal não se verificou porque não houve consenso entre o Governo e a Renamo sobre quem assumiria responsabilidades materiais inerentes à desmobilização, visto que estes homens iriam necessitar de um pacote económico de reinserção.

5- Estas e outras atitudes políticas intransigentes por parte dos dois ex-beligerantes levaram a que este problema não fosse resolvido, e se estendesse no tempo, até à deterioração que se vive hoje. Apesar do Governo possuir a lei do seu lado, é questionável se possui legitimidade para resolver um assunto desta natureza por via da força. É essencial questionar os motivos que levaram a Renamo a querer manter esta força num período inicial, e mantê-la posteriormente, e isso trará respostas que remontam à partidarização das forças de defesa e de segurança. Ao pretender resolver o assunto por via da força o Governo trai o povo Moçambicano e o seu direito à Paz, bem como o espírito democrático e de resolução de conflitos por via pacífica. Veja-se que a Constituição de 2004, no seu artigo 11, estabelece como objectivos fundamentais do Estado Moçambicano, a consolidação da unidade nacional; o reforço da democracia, da liberdade, da estabilidade social e da harmonia social e individual; e a promoção de uma sociedade de pluralismo, tolerância e cultura de paz, entre outros. Não parece que o uso de meios militares para resolver problemas fundamentalmente políticos, leve à prossecução destes objectivos ao qual o Estado Moçambicano, e por via dele o Governo em funções, se obriga por via da Constituição. 

6- Em princípio, o uso da força significa que a via negocial falhou, mas é preciso:

a. questionar primeiro se as negociações foram genuínas de parte a parte, ou apenas mais uma orquestração política para transmitir à sociedade a noção de que se pretende resolver os conflitos a bem, quando na verdade o que se ambiciona é consolidar poder através do uso da força;

b. relativizar esta assumpção concernente à falha da via negocial, visto que o uso de uma medida militar robusta pode ser utilizada por qualquer das partes para reforçar a sua posição negocial. Isso foi feito por ambas as partes dado os assaltos da Renamo em Muxúnguè, e agora o ataque governamental à base da Renamo em Sadjunjira. São contudo estratégias extremamente perigosas, porque por um lado a escalada do conflito pode fugir ao controlo dos líderes, e porque por outro lado demonstram uma falta de consideração pela vida humana, já que as eventuais baixas são apenas tidas como dano colateral. 

c. perceber que ou as forças de defesa e segurança Moçambicanas estão, no mínimo impreparadas, porque incapazes de autodomínio quando confrontadas por provocações dos homens armados da Renamo (a avaliar pelas declarações públicas do Ministério da Defesa), respondendo não como uma força do Estado, mas sim reagindo como uma congénere amadora destas forças irregulares; ou como tudo indica, que este incidente foi apenas um pretexto para desencadear uma acção estratégica já planeada e ordenada, sendo que neste caso, o país deveria receber, em primeira mão, uma explicação pública aberta e assumida por parte do Comandante-Chefe das Forças de Defesa e Segurança, que é quem dá ordens às forcas de defesa e segurança, e perante quem elas prestam contas.

d. entender porque razão, mesmo sem a colaboração negocial da Renamo, não foram oferecidas pelo Governo, condições aos homens armados para incentivá-los a deixar as forças irregulares da Renamo, e adoptar uma vida pacífica. É importante perceber que antes de serem homens armados da Renamo, estes cidadãos Moçambicanos, contanto que livres de instrumentalização política, podem ser reinseridos na sociedade. É incompreensível que tal estratégia não tenha sido previamente explorada pelo Governo, passando de imediato a posições belicistas. 

7- O que é lamentável é que os dois líderes Moçambicanos que personificam estas acções não compreendam que o uso destes meios violentos para alcançarem os seus intentos não faz deles vencedores ou perdedores, mas representa sim o profundo fracasso político de ambos na manutenção da paz que ironicamente ajudaram a construir em tempos idos.

A Paz não se constrói com autoritarismo nem com oportunismo político:

8- Ainda que a Paz negativa se mantenha, quer venha a existir conflito de baixa intensidade ou não, Moçambique e os seus cidadãos não podem ficar reféns das artimanhas políticas e militares destes adversários, competindo-lhes a eles levantar o sinal vermelho aos ex-beligerantes. 

É preciso que os Moçambicanos se mobilizem para isso, sob o risco de estarem a aceitar tacitamente que sejam novamente tratados como simples observadores ou pior, como meros danos colaterais. Infelizmente, exemplos disso não faltam nos últimos desenvolvimentos políticos em Moçambique. Na história recente, basta apenas recordar que durante as negociações de paz, apesar da imensa crise humanitária que se abatia sobre o país, e dos inúmeros protestos de vários quadrantes da sociedade, as partes continuaram a utilizar tácticas negociais. Prolongaram o processo, evitando o alcance célere de um cessar-fogo que iria proporcionar alívio humanitário às populações. 

Em contraste, uns anos depois, chegava-nos da África Ocidental, o exemplo inspirador da Libéria, que após um regresso ao conflito pela segunda vez, em 2003 encetou novas negociações de paz. Neste contexto, um grupo de mulheres organizou-se, protestou, fez lobby e em última instância, cercou a saída do edifício em que as partes se encontravam reunidas em Accra, e de lá não saiu, enquanto os beligerantes não chegaram a um acordo de cessar-fogo viável. 

9- Hoje os Moçambicanos não estão numa situação tão débil como em 1990-94, e como tal, podem escolher continuar a ser vitimizados, ou pelo contrário, decidir tornarem-se agentes activos, e demonstrar ao políticos que temos Povo! Um Povo que não permite aos políticos que lhe roubem o mínimo de paz e de estabilidade em que vivem; um Povo que não deixa que os políticos comprometam o presente e o futuro das suas crianças e famílias; um Povo que faz saber aos políticos que o país é de todos, e não um feudo seu e das suas forças de segurança. Hoje, mais do que nunca não são só os líderes e as suas forças que estão causa, cada um de nós como Moçambicano está também à prova! Repetimos incessantemente que a ‘A LUTA CONTINUA’, mas será que como Povo temos maturidade e verticalidade para continuar a honrar a obra e morte dos nossos antepassados, bem como a vida dos nossos contemporâneos? As nossas acções e inacções serão também julgadas pelas gerações vindouras...desenganem-se aqueles que pensam que só os líderes serão julgados pela História!

Fonte: AQUI mural da autora

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