sexta-feira, junho 27, 2014

GUEBUZA LANÇA AREIA NOS OLHOS DOS MOÇAMBICANOS E, “A LUTA CONTINUA!”

Por Alfredo Manhiça


O slogan “a luta continua”, embora seja, hoje, utilizado por pessoas de várias tendências políticas, e em várias circunstâncias da vida é, originariamente, património dos regimes filo-comunistas. No caso de Moçambique, ele é associado ao movimento independentista da Frente de Libertação   de Moçambique (Frelimo) e as suas campanhas de politização das massas.
Na nova subsistência desta organização política, quando, isto é, nos princípios da década Noventa, como única forma para inserir-se na nova ordem política mundial resultante da queda do muro de Berlim em Novembro de 1989, foi constrangido a abandonar o sistema totalitário do partido único para adoptar o sistema multipartidário, o slogan “a luta continua” passou a descrever a nova situação na qual os membros e simpatizantes do partido eram incitados a agir e a comportar-se politicamente como se o depois da introdução do multipartidarismo fosse igual ao antes da introdução do multipartidarismo, e o depois da inauguração do processo da democratização fosse igual ao antes da inauguração de tal processo.

Neste caso, o gesto do presidente Armando Emília Guebuza de devolver a “Lei da Revisão da lei do Estatuto, Segurança e Previdência do Deputado” e a Lei da Revisão da Lei 21/92, de 31 de Dezembro, que estabelece os Direitos e Deveres do Presidente da República em exercício e depois a Cessação de Funções, mais do que ser motivado – como alegou o presidente da República - pelo “impacto socioeconómico negativo que [as duas Leis] poderão causar e o difícil cumprimento, em termos financeiros e orçamentais”, o mais provável é que a devolução tenha sido motivada por razões estratégicas.
Para consentir-se que a verdadeira razão por detrás da devolução das duas “Leis das mordomias” tenha sido o impacto socioeconómico negativo que elas poderiam causar deve-se – contrariamente a todos os ditames da razão – admitir-se que tanto Guebuza [na sua qualidade de presidente do partido maioritário na Assembleia da República (AR)], como todos os deputados da AR, não conheciam, até agora, a situação real socioeconómica do país. Viviam, até aqui, julgando equivocamente que, como eles, todo o resto dos moçambicanos vive de luxo e no luxo.
Admitir que a AR tenha votado as duas Leis em questão por ignorância do “impacto socioeconómico negativo” que poderiam causar é absurdo! É mais racional concluir que a única razão que motivou a devolução das duas Leis em questão tenha sido a existência de evidentes inconveniências: as duas Leis que tinham como finalidade (não confessada) a legalização da já existente praxis da lapidação do erário público e a reparação das fissuras causadas pela questão da sucessão do presidente Guebuza, foram vetadas porque foram votadas e apresentadas para a sua promulgação num período conturbado e, portanto, inoportuno, representado pelo vertiginoso declínio da popularidade do partido Frelimo e da figura de Armando Guebuza; ascensão do Movimento Democrático de Moçambique (MDM); e o regresso à guerra civil cujo parte significativa de moçambicanos imputa a responsabilidade ao governo da Frelimo.   
Mas, o que deve ficar claro a todos os moçambicanos é que o recuo do presidente Guebuza não é abandono ao seu explícito programa de utilizar o poder político para a acumulação de riqueza para si, para os membros da própria família e para os membros do próprio partido. Em outras palavras, a luta pela hegemonia e pela instauração de um absolutismo de facto, continua! O recuo do presidente Guebuza é estratégico. E esta estratégia é típica dos regimes totalitários, autocráticos e clientelares. Quando são confrontados com as críticas ou protestas provenientes do público ou dos grupos (ou partidos políticos) da oposição, procuram esmorecer as críticas ou as protestas introduzindo algumas reformas insignificantes, ou fazendo algumas concessões temporárias. Insignificantes porque tais reformas não tocam o núcleo da questão objecto da contraposição e; temporárias porque no momento subsequente à crise, ou depois de ter eliminado os críticos e os organizadores da protesta, segue a revogação das concessões feitas.
Julgando a partir do comportamento do governo do partido Frelimo nos últimos nove anos, caraterizado por ações concretas e sistemáticas que visam efetivar um refluxo do processo da democratização das instituições políticas moçambicanas e a instauração de um absolutismo de facto; e julgando a partir do desenrolar do processo da eleição/nomeação do candidato do partido no poder para as Eleições Gerais do próximo dia 15 de Outubro, é justificado suspeitar que Guebuza e a Frelimo não renunciaram as duas “Leis das mordomias”. Guebuza devolveu-as “para não espantar a presa” e continuará a “caçar” o melhor momento para a sua promulgação e publicação. A sua caça do melhor momento para dar o “golpe de graça” é facilitado pela existência de disposições jurídicas compatíveis à manobra esboçada. De facto, segundo o Art. 163 § 3 da Constituição da República, se uma lei “reexaminada for aprovada por maioria de 2/3, o presidente da República deve (é vinculado a) promulgá-la e mandá-la publicar”. E a Frelimo tem mais de 2/3 dos seus membros na AR. Esta disposição foi copiada (literalmente) das constituições das democracias consolidadas e ela supõe uma situação na qual existe uma independência do poder Legislativo em relação ao poder Executivo, e um equilíbrio e contrapeso de forças entre os dois poderes. A ratio legis desta disposição é aquela de fornecer ao Parlamento um poder de – em caso de necessidade - constranger o presidente da República a promulgar uma determinada lei do qual, eventualmente, poderia querer subtrair-se. No nosso caso de Moçambique, onde o poder Legislativo é refém do Executivo e constituído maioritariamente pelos delfins do presidente Guebuza, a disposição do § 3 do Art. 163 da Constituição é prestável a manipulação por parte de todos os que têm interesse pela promulgação das duas “Leis das mordomias”.  
Todavia, condicionado pela aproximação da data da realização das Eleições Gerais e, temendo o voto de punição, o mais provável é que a Frelimo não utilize o instrumento de reexame e reenvio para a promulgação das duas Leis, mas poderá utilizar um outro instrumento. Em caso de vitória nas Eleições de 15 de Outubro, o mais provável é que o futuro governo de Filipe Nhusi, em menos de seis meses, faça reexaminar e votar, na íntegra, as duas disposições de  Leis e mandar ao novo presidente da República cuja legitimidade do seu partido terá sido, aparentemente, potenciada pelo resultado das urnas.
Alguns moçambicanos como, por exemplo, a Diretora Executiva da Fórum Nacional de Rádios Comunitárias (FORCOM), Benilde Nhalivilo, saudaram o gesto do presidente da República alegadamente porque soube “escutar e levar em consideração a voz dos cidadãos moçambicanos que se opuseram a estas leis”. Portanto, segundo esta visão, o vencedor na questão das duas “Leis de mordomias” seria a sociedade civil moçambicana. Pode ser, mas é uma vitória efémera! O que deve mudar no jogo político moçambicano não é o comportamento deste ou daquele outro dirigente político, é o modo em si de fazer política.
Ora bem, nas democracias contemporâneas, onde os principais e direitos elaboradores de políticas públicas são os partidos políticos e; onde os privilegiados interlocutores do partido no governo são os partidos de oposição e, portanto, a dialética entre os governantes e os governados passa através da dialética entre o governo e os partidos da oposição, uma efetiva mudança do modo de fazer política passará, necessariamente, através da ação dos partidos de oposição. Eles (os partidos de oposição) são equiparáveis a um laboratório que recolhe a opinião pública manifestada em forma de crítica e protesta popular para, depois, reelaborá-la em forma de um programa político alternativo ao programa do governo do dia. O governo do dia, por sua vez, reage introduzindo reformas que visam anular os programas alternativos da oposição e a contentar os eleitores a quem, nas eleições sucessivas, irá pedir o renovamento do voto de confiança. Será, por conseguinte, o eleitorado a avaliar se o partido no governo, efetivamente, respondeu positivamente às suas exigências, ou se o programa político alternativo apresentado pela oposição é mais apetitoso, convincente e idóneo para enfrentar com sucesso os cruciais problemas do país.
É precisamente aqui onde, na minha modesta opinião, a nossa “aventura” política falha. A oposição não tem sabido reagir positivamente a este desafio. Já que pela natureza das coisas, a tendência de quem detêm o poder é conserva-lo e aumentá-lo, a nobre missão de consolidar o processo da democratização das instituições políticas é, necessariamente, confiada à oposição, graças ao privilégio que tem de interagir diretamente e ao alto nível como o governo do dia. Mas, infelizmente, a oposição moçambicana é refém dos esquemas de fazer política criados e utilizados pela Frelimo; não consegue criar um perfil próprio nem escutar as exigências do atual contexto político moçambicano. Como a Frelimo, os partidos de oposição dão ouvidos unicamente aos interesses dos seus dirigentes e dos membros mais influentes. A sua essência de oposição é constituída por simples facto de ser um partido a mais, e não por possui uma proposta diferente de modo de fazer política.
A oposição tem dado a impressão que a sua principal preocupação não é aquela de propor um programa político alternativo àquele do partido no governo, mas é a simples substituição da Frelimo, implicitamente, para depois continuar a utilizar os mesmos esquemas de governação utilizados pela Frelimo. De facto, quase todos os dirigentes dos partidos da oposição de Moçambique sabem dizer e repetir insistentemente que para livrar o País dos homens e mulheres que durante 39 anos utilizaram o poder político a eles confiado para tutelar os próprios interesses, em detrimento do bem do País e do resto dos moçambicanos, é necessário uma mudança da orientação do voto, mas nunca souberam apresentar um programa alternativo de governação que – em caso de sua vitória – iriam implementar para sanar os vícios criados pela longa administração do partido Frelimo, e para evitar que no futuro volte a repetir-se a mesma situação.
A oposição tem-se comportado como se acreditasse que depois dos 39 anos marcados por uma sistemática violação dos direitos dos cidadãos, instauração de facto de um regime autocrático/clientelar, os eleitores moçambicanos se contentam com uma simples substituição da Frelimo por um outro partido. Na verdade, o que os moçambicanos exigem e continuarão a exigir sempre mais da oposição é um empenho muito mais elevado do que uma simples substituição.  
É verdade que a imagem do partido Frelimo degradou-se muito, sobretudo, nos últimos dez anos; e é verdade, também, que a maioria dos moçambicanos gostaria de afastar a Frelimo do governo do País, mas isso não significa que os moçambicanos se contentem com uma simples substituição por um outro partido. O anseio do povo moçambicano não é mudar do partido. A mudança do partido é instrumental para a mudança do sistema político e por isso a missão que os eleitores gostariam de confiar à oposição não é aquele de substituir a Frelimo. Isto é demasiado pouco para os eleitores. Pouco porque não iria melhorar em nada a sua condição e não iria resolver os cruciais problemas do País. O que os eleitores moçambicanos querem ver substituído é o sistema de governação autocrático/clientelar de facto, por um Estado de direito e democratizado.
As populações que nas províncias de Tete, Niassa, Gaza, Cabo Delgado, Nampula, Maputo, etc, foram obrigadas a abandonar as suas regiões de origem e as suas terras que desde sempre constituíram a única base da sua subsistência, para dar lugar aos megaprojetos  que beneficiam unicamente as empresas multinacionais extractivas, a nomenklatura do partido no poder e os membros das suas famílias, esperam ansiosamente por uma oposição que tenha programa político cujo leitmotiv é dar uma solução satisfatória à questão de habitação e da propriedade da terra das populações rurais. De facto, o que permitiu a usurpação das terras às populações rurais, o seu reassentamento em lugares desérticos (sem as mínimas condições de sobrevivência) e a concessão das suas terras às empreses multinacionais, é a existência de uma Lei de Terra aberta a muitas interpretações abusivas da parte de quem detêm o poder, e a praxis de negociados contractuais secretos que beneficiam unicamente a nomenklatura do partido no poder e os membros das suas famílias, graças à injustificada identificação, de facto, do Estado com o partido no poder.
Poderia, portanto,  pedir com sucesso, o voto de confiança dos eleitores das regiões vitimas do fenómeno da defraudação de terras, o partido de oposição que fosse capaz de apresentar um programa político que inclui uma reforma da Lei da Terra que visasse tutelar os direitos inalienáveis das populações locais através de uma renegociação dos acordos e dos contratos perversos estipulados com as multinacionais; um programa político que estabelecesse novas indemnizações que fossem proporcionais aos prejuízos causados e aos benefícios previstos; um programa político que visasse renegociar os contractos em função da tutela, não dos interesses da nomenklatura política, mas da inteira nação moçambicana. 
A administração pública fundada na corrupção que, embora odiada por todos parece, paradoxalmente, praticada por todos, persiste e aumenta sempre mais, não porque o governo não tenha meios e modos para combate-la, mas porque os principais beneficiários deste perverso fenómeno é o próprio governo, os membros mais influentes do partido no poder, os altos funcionários da administração pública e os membros das suas famílias. Neste sistema, a redistribuição da riqueza não é que não exista, mas, em vez de beneficiar todas os estratos sociais e todas as regiões do País, é canalizada unicamente para beneficiar grupos bem definidos. As populações, as regiões e os grupos sociais que não fazem parte do circuito do partido no poder, ou das pessoas próximas aos membros do partido, não só ficam excluídos dos benefícios da corrupção como também são eles que pagam os seus custos. Os estratos sociais que suportam os custos da corrupção servem de escada para a mobilidade social dos beneficiários da corrupção. Por conseguinte, enquanto o sistema da corrupção permite aos altos dirigentes de acumular a riqueza através de ilimitadas isenções aduaneiras (e venda das isenções); autoatribuição de vencimentos, privilégios e regalias faraónicas; canalização de oportunidades de negócio para as próprias empresas ou empresas controladas pelos membros das próprias famílias; os funcionários do baixo ranking, tais como professores, profissionais de saúde e os polícias – sob o olho grosso dos dirigentes – sugam o sangue do povo comum.
Diante deste estado de coisas, os eleitores moçambicanos dariam, em massa e sem reservas, o próprio voto de confiança, a um partido de oposição que estivesse disposto a apresentar um programa político de governação que visasse restituir ao Estado o que a ele foi defraudado através dos mecanismos autocráticos/clientelares e, simultaneamente, criasse um sistema de controlo institucional capaz de garantir que a riqueza nacional seja redistribuída entre todos os moçambicanos através do financiamento dos sectores públicos como a Educação, a Saúde, as infraestruturas rodoviárias e ferroviárias, o financiamento do sector agrícola, etc.
Os operários, condenados a trabalhar sob condições desumanas nas empresas multinacionais espalhadas por todo o País, são vítimas da insensibilidade, ganância e exploração pela mão dos próprios governantes. Os acordos e contractos negociados e rubricados secretamente entre os dirigentes do partido no poder e as multinacionais, estipularam vencimentos miseráveis e as condições de trabalho precárias porque parte do dinheiro que devia melhorar as condições de trabalho e pagar salários dignos aos operários serve para cobrir o valor necessário na participação do parceiro moçambicano que, por sinal, é um dirigente ou grupo de dirigentes do partido no governo que, como diz Mia Couto, para ser empresários, não precisam de empreender nada.
Portanto, os operários moçambicanos clamam, impacientemente, por uma oposição com um programa político capaz de libertar-lhes da exploração da parte dos próprios dirigentes políticos e empresas multinacionais; um programa político que visa privilegiar os interesses e a segurança dos trabalhadores em todas as  contratações com as empresas multinacionais.
Uma parte muito significativa dos recursos nacionais e do financiamento que o País recebe dos seus parceiros, quer em forma de ajuda como em forma de empréstimo, é sistematicamente gasto em regalias desnecessárias e extravagantes dos dirigentes políticos e altos funcionários públicos. Os moçambicanos precisam duma oposição que mostre que não é movida pela ambição de conquistar as mesmas regalias, mas pelo melhoramento  das condições daqueles compatriotas que vivem abaixo do nível mínimo aceitável de pobreza; uma oposição que tenha um programa político cujo objectivo é desenvolver o País e não enriquecer os políticos.
A incapacidade ou a falta de vontade – da parte da oposição - de apresentar, com clareza, os seus programas políticos é concebido e interpretado por muitos observadores como uma omissão intencional, ou seja, uma estratégia diabólica que concentra as atenções na conquista do poder político para, depois, prosseguir pelos mesmos caminhos enveredados pela Frelimo, sem nenhum perigo de crítica ou protesta popular porque não terá existido nenhuma promessa concreta feita ao eleitorado. Se este fosse o plano da oposição, duvido que os eleitores deem o próprio voto. O mais provável é que eles (os eleitores) optem por dar o próprio voto de confiança a um mal já conhecido e, nesse caso, a Lei da Revisão da lei do Estatuto, Segurança e Previdência do Deputado e a Lei da Revisão da Lei 21/92, de 31 de Dezembro, que estabelece os Direitos e Deveres do Presidente da República em exercício e depois a Cessação de Funções, iriam ver o advento do seu processo de reexame e a subsequente promulgação e publicação.

                                                                                                                                                                                        Alfredo Manhiça


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