quarta-feira, julho 30, 2014

15 DE OUTUBRO DE 2014: AS ELEIÇÕES DE TRANSIÇÃO

Por Alfredo Manhiça

O consenso alcançado - na Segunda-feira, dia 28 de Julho, na 66ª ronda negocial entre o governo da Frelimo e a Renamo, no Centro de Conferências “Joaquim Chissano” - sobre o documento base alusivo ao fim das hostilidade no país, dissipa as nuvens que, por longo período, pairaram na opinião pública dos moçambicanos sobre a efetiva realização das eleições gerais marcadas para 15 de Outubro. Tendo aumentada a certeza da sua realização, o que é que se pode esperar das eleições de 15 de outubro?

À semelhança das relações de produção de uma determinada economia, as quais estão destinadas a permanecer inalteradas enquanto forem constantes as forças produtivas, um determinado sistema político, de juri ou de facto, reproduzir-se-á no espaço e no tempo, enquanto permanecer inalterado o equilíbrio de forças dos seus atores.
Não obstante a literatura política atribua às primeiras eleições multipartidárias (as de 1994) o  índole de “eleições de transição”, em muitos aspectos não o foram e, não o podiam ser. Não qualificaram, de facto, para ser chamadas, rigorosamente, “eleições de transição, em primeira instância, porque as dinâmicas em si que desembocaram nos processos de democratização do sistema político moçambicano foram pilotadas substancialmente pelo partido no poder em conivência com as maiores potências internacionais e, o envolvimento das forças políticas da oposição e do resto dos moçambicanos foi subordinado aos interesses e conveniências do partido no poder, a Frelimo e, portanto, um envolvimento dos cidadãos de tipo plebiscitário.  A utilidade política das transformações operadas na primeira metade de década Noventa foi, principalmente, aquele de acomodar o partido Frelimo na nova ordem mundial a seguir à sua transmutação de partido filo-comunista para um partido de filiação “liberal-democrático”; inscrever o Estado moçambicano no elenco dos países de sistema multipartidário; e acomodar a Renamo no sistema jurídico moçambicano, transformando-a de um movimento apelidado desestabilizador (bandidos armados) para um partido político.
Os outros 3 pleitos eleitorais realizados sucessivamente às eleições de 1994 foram utilizados pelo partido Frelimo para legitimar, a nível nacional e internacional, o seu controlo absoluto, de facto,  do poder político e económico e para consolidar o regime hegemónico, caraterizado pela existência formal de partidos de oposição que, no entanto, não exercem nenhuma influência nem na tomada de decisões políticas que afectam o país em quanto tal, nem na aprovação das políticas públicas.
Passados vinte anos, o  equilíbrio de forças dos atores políticos moçambicanos modificou-se muito. Embora a Frelimo continue e tenha intensificado o seu controlo absolutista do poder político-institucional e económico, já existem, pelo menos, dois partidos de oposição – a própria Renamo e o MDM – que, além do simples influenciar a tomada de decisões políticas e as políticas públicas, manifestam claras ambições de substituir a Frelimo no governo do país. Além da ação destes dois partidos da oposição, os eleitores que nos pleitos precedentes prestavam-se maleavelmente para todo o tipo de demagogias e manipulações orquestradas pelo partido Frelimo e pela midia controlada pelo partido no poder, nos últimos anos, os mesmos eleitores, têm mostrado o desejo e a determinação de participar no processo eleitoral de 15 de Outubro, não como “ovelhas levadas ao matadouro” que deixam-se conduzir passivamente ao encontro da própria morte, mas como pessoas com opinião política própria e responsáveis pelo próprio destino político.
O próprio partido no poder – a Frente de Libertação de Moçambique – mais do que ninguém, manifesta ter-se apercebido (desde a primeira hora) da inadiabilidade e irresistibilidade duma metamorfose político/institucional a ser inaugurada pelas eleições de 2014. De facto, sintomas como o modo em que o “partidão” realizou o seu X Congresso, em Setembro de 2012; o tipo de tratamento que reservou, nos últimos anos, no seu relacionamento com a oposição; a opção pela solução militar na questão do diferendo com a Renamo; a emergência de um conflito interno, sem precedentes, na questão da sucessão de Guebuza; o modo como Filipe Jacinto Nyusi foi nomeado candidato do partido, etc. - manifestam um inequívoco nervosismo de um organismo que, vinculado pelos factores externos incontornáveis, sente-se constrangido a transformar-se.
Por sua vez, o partido Resistência Nacional Moçambicana, que muitas vezes foi acusado de não desempenhar adequadamente o seu papel de principal partido de oposição, desta vez, mostrou-se em altura de saber intervir no momento exato e de forma imponente num processo político que ameaçava coloca-lo numa posição de interlocutor do segundo grau. Foram dois os últimos desenvolvimentos políticos que ameaçavam condenar a Renamo a um movimento-partido da história. Em primeiro lugar, além do controlo absoluto das instituições públicas e dos recursos económicos, a consolidação da hegemonia do partido Frelimo passava também através do esvaziamento dos conteúdos do Acordo Geral de Paz (AGP) que, no dia 4 de Outubro de 1992, pôs fim à primeira guerra civil entre o governo da Frelimo e a Renamo. O esvaziamento dos conteúdos do AGP, além de aplanar a estrada para a instauração do monopólio político, era também destinado a pôr fim ao prestígio de que a Renamo goza (graças ao facto de ser um dos signatários do AGP) de ser o interlocutor mais privilegiado do partido no governo. Apelando à revisitação dos protocolos do AGP que não foram integralmente implementados, para justificar o seu regresso às matas de Gorongosa, o líder da Renamo, Afonso Dhlakama, quis restituir ao AGP o seu originário valor político/institucional revitalizando, desse modo, a própria notoriedade e o prestígio da Renamo no xadrez político do país. A segunda ameaça da Renamo vem do crescimento progressivo da importância política do partido de Daviz Simango, o Movimento Democrático de Moçambique, confirmado pelos resultados obtidos por este partido nas eleições municipais de Novembro de 2013.
A feliz estratégica intuição de Dhlakama consistiu em saber dar voz ao clamor e gemido de milhões de moçambicanos que se sentem cada vez mais sufocados pelas políticas autocráticas e absolutistas do presidente Armando Guebuza e seu partido Frelimo. É nesta linha que deve ser interpretado o gesto extremo de Dhlakama de abandonar a própria residência na cidade de Nampula, para instalar-se na antiga base militar de Sadjundjira, em Outubro de 2012, e o modo como muitos moçambicanos reagiram àquele gesto, atribuindo a Guebuza e o seu governo as responsabilidades quer daquele gesto como do subsequente reinício da guerra civil.
A obsessiva preocupação do partido Frelimo em partidarizar de modo absoluto as instituições públicas e intensificar a concentração do controlo político e dos recursos económicos;  o regresso ao estado de guerra civil; a ascensão, sem precedentes, do partido de Daviz Simango; a proliferação das Organizações da Sociedade Civil e da Imprensa independente – sinais evidentes da impopularidade de Guebuza e da Frelimo – ajudaram a criar uma convergência de consciência política desejosa de mudança entre os partidos de oposição e o eleitorado nacional. O ativismo político em curso - quer da parte do partido no poder, quer da parte da oposição, como também da parte da Sociedade Civil - mostra que o equilíbrio de forças dos atores políticos moçambicanos mudou e, por isso deve também mudar o tipo de governação. De facto, a realização das eleições nunca foi tão incerta como desta vez; tão desejada pelos partidos da oposição e pelos eleitores, como desta vez e; tão indesejada pelo partido no poder, como desta vez! Trata-se de eleições de transição.
Embora se diga que uma metamorfose política deriva, geralmente, do desenvolvimento da consciência política de uma dada sociedade, essa pode também derivar do conflito de gerações. No caso moçambicano, além da antiga luta intestina pela afirmação de uma determinada ala, em detrimento da outra, no seio do partido no poder, as cotoveladas que marcaram o longo percurso da indicação do sucessor de Guebuza manifestam também um evidente conflito de gerações. O cuidadosamente selecionado sucessor de Guebuza, Filipe Jacinto Nyusi, além da incumbência de tutelar e proteger interesses bem definidos, devia também ser uma figura capaz de atuar uma transição menos dolorosa no controlo do poder político/institucional, das mãos dos “libertadores da pátria” para as mãos dos seus filhos. De facto, os principais objectivos do movimento dos filhos dos Antigos Combatentes (AC) que, ordinariamente reúnem-se mensalmente, nos escritórios da Associação dos Combatentes da Luta de Libertação Nacional (ACLLN), presidido pela dupla Samora Júnior e Valentina Guebuza, é “dar continuidade ao projeto dos combatentes, apoiar seus pais, procurar assumir os lugares conquistados pelos seus pais para não deixar morrer seus ideais.”
Todavia, não obstante Filipe Nyusi possa ter todas as boas intenções de honrar a confiança depositada nele pela velha guarda, a missão é dura! Não nos esqueçamos que  os movimentos de resistência que nos fins do século XVIII e princípios do século XIX combateram vitoriosamente os poderes imperiais/coloniais de Espanha e Portugal, e conduziram a América Latina e o Brasil à independência e à fundação de Estados soberanos, foram fundados e dirigidos pelos criollos (os filhos de espanhóis e portugueses nascidos na América Latina e no Brasil) que não concordavam com o regime colonial instaurado e administrado pelos próprios pais. Portanto, chegado à Ponta Vermelha, Nyusi poderá querer materializar uma agenda autónima e eventualmente contrária aos interesses daqueles que promoveram a sua nomeação. Nesse caso, teria que contar com as novas gerações. De facto, desde que Filipe Nyusi foi nomeado candidato do seu partido para as eleições de 15 de Outubro, se assiste uma multiplicação de encontros e convívios entre os filhos dos Antigos Combatentes (AC) na capital moçambicana. O que estará por de trás desta intensificação de laços entre os filhos dos AC? O que é que os herdeiros da fortuna e das oportunidades económicas adquiridos graças ao controlo do poder político sonham e pensam do futuro de Moçambique? Poderão ser os futuros “criollos” que saberão pôr em prática o que os discursos vazios dos seus progenitores sempre proclamaram?
Não obstante o que até aqui foi dito, a minha preferência pelo termo “transição”, nesta reflexão, significa que as eleições de 15 de outubro não são, necessariamente, uma porta que nos faz entrar na “terra prometida”, embora nos façam sair do “Egito”. Tudo ainda é possível, inclusivo o arrependimento de faraó e o subsequente envio dos seus soldados para levar-nos de volta ao “Egito”, basta observar a composição das listas apresentadas pela Frelimo para as candidaturas a deputados da Assembleia da República (AR), predominadas ainda pelas velha guarda.
Partindo do pressuposto que na próxima legislatura nenhum partido tem possibilidade real de alcançar uma maioria qualificada na AR, dever-se-ia esperar num Parlamento moçambicano mais autónomo e mais independente em relação ao poder executivo; uma AR capaz de superar as atuais acusações sobre o seu silêncio cúmplice face à violação sistemática do ordenamento jurídico nacional e a lapidação do erário público da parte dos altos dirigentes. Mas a vitória sobre os vícios do passado só será possível se os futuros deputados estiverem dispostos a libertar-se da velha lógica da utilização das funções públicas para fins pessoais. Caso contrário, na nova situação de um Parlamento no qual nenhum partido terá uma maioria qualificada,  poder-se-á assistir o jogo sujo das corporações cruzadas (alianças entre grupos parlamentares de diferentes partidos) finalizadas a encobrir e justificar os desmandos do governo do dia, em troca de favores políticos ou oportunidades económicas.
Por sua vez, os herdeiros da fortuna proveniente de sistemáticos atos impunes de lapidação do erário público, os filhos dos “libertadores da pátria”  - que, com mais probabilidade, serão eles a ocupar as funções públicas mais importantes do futuro governo, sobretudo em caso da vitória do partido Frelimo - só poderão conferir conteúdo aos vazios discursos de “luta contra a pobreza”, proferidos pelos seus progenitores, se forem capazes de renunciar as fúteis pequenas ambições de tornar-se os novos “supermen” ricos mas incapazes de produzir riqueza, para substituí-las com as grandes ambições de fazer de Moçambique um glorioso país. Se continuarem – a exemplo dos seus progenitores – a deixar-se guiar pela “Vontade de Potência” ou (como a Valentina Guebuza), se preferirão os títulos de príncipes/princesas milionários, em detrimento do inteiro país que continua a figurar entre os últimos 10 Estados com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mais baixo, então a “terra prometida” continuará inalcançável para os moçambicanos. A sua sorte se traduzirá em vagabundagem no “deserto”, com o risco do regresso à escravidão do “Egito”.

                                                                                                                                                                  Alfredo Manhiça

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